Site Cultural de Feijó

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‘Velho do Rio’ conta história de Caruncho, falso profeta que engravidou filhas de seringalistas no Acre

O sertanista José Meirelles no rio Envira, na fronteira do Acre com o Peru. (Foto: Arquivo pessoal)
Por José Meirelles
CARUNCHO. O FALSO PROFETA
O seringal Porto Rubim, nome herdado de seu fundador português Quincas Rubim por volta de 1895, é o penúltimo seringal rio Envira acima. Foi grande produtor de borracha extrafina nos tempos áureos do ouro negro.
Por volta de 1990 era administrado pelo Chico Manduca e sua produção era de algumas cabeças de gado, porcos, patos, galinhas e produtos do roçado. Os descendentes dos antigos seringueiros, agora barranqueiros, gravitavam e negociavam estes produtos em seu entorno.
A foz do rio Envira, no rio Tarauacá é no estado do Amazonas, numa pequena cidade, que naquele tempo se chamava Pacatuba, hoje rebatizada Foz do Envira. Nesta região de baixos alagados é muito difícil criar gado. A maioria da carne da cidade era fornecida pelos seringais dos altos rios no Acre. De lá saiam barcos com mercadoria e um pouco de dinheiro para trocar por bois no Porto Rubim.
Numas dessas viagens, junto com a carga e a tripulação vinha o Caruncho. Baixo, olhos miúdos, bigode de paca e cabelos pretos, denunciavam sua descendência de alguma vó indígena dos baixos rios. Se dizia profeta, curandeiro, tirador de “esprito ruim”, de panema e outras mazelas que o diabo arma na mata e Deus consente.
Arrumou com o Chico Manduca um velho depósito vazio do seringal e se instalou. De início fazia pequenas seções, mas com o tempo, a fama correndo, nos fins de semana era o programa preferido dos moradores e vizinhos do Porto Rubim. O Chico Manduca viu logo o seu borrador (livro caixa de seringal) se encher de novos débitos devido às seções do Caruncho. Dinheiro entrando, nada contra.
Acontece que as seções de fim de semana começaram a se estender para a semana toda. Os finais de semana eram festas, regadas à cachaça e churrasco de porcos e carneiros doados ao profeta. Galinhada caipira com pirão escaldado sempre tinha. Dona Francisca, criadeira de galinha indiana, aquela de pouca pena e muita carne, sacrificou suas melhores matrizes no panelão do Caruncho, além dos frangos capados que trocava por mercadoria nos regatões e barcos boiadeiros. O Caruncho comeu todos, no literal e suas duas filhas solteiras no figurado. Apareceram grávidas. Felizmente tem muito boto no remanso e a culpa é deles.
O Antonho Briba, caçador renomado, jogou sua 28 no remanso em frente ao seringal, por orientação do Caruncho que dizia que Deus proveria as necessidades. Antonho Duó, criador de porcos, ficou só com o barrão velho. As porcas e os capados viraram churrasco.
O gado do Chico Manduca, agora sem custeio, e de pasto sem zelo, amufambou-se nas capoeiras e costas de praia, fartos de ôra (berne). Farinha só comprando de fora. Quem aguenta trabalhar depois de uma noite de tiração de espíritos, indo dormir na amanhecença do dia?
A mulherada de olho vermelho dormia até de tarde.
O Chico Manduca, pragmático que só mascate levantino, começou a fazer as contas no borrador. Dívida tinha muita. Mas com que pagar? O povo do Porto Rubim não tinha mais tempo e nem mercadorias pra saldar as dívidas. Coçava ele a cabeça com a mão direita e alisava o cabo do 38 da cintura com a esquerda.
Por coincidência atraca no porto o batelão boiadeiro do Carlos e seu ajudante Fumaça. O Carlos tinha quase dois metros de altura e largura. Acostumado a puxar garrote de dois anos pelas orelhas pra dentro do batelão sem precisão de corda. O Fumaça do mesmo calibre. Vinham comprar bois pra levar pra Pacatuba. Mas cadê os vaqueiros do Chico Manduca? Dormindo. Os dois passaram uns quatros dias pra juntar uma meia dúzia de tucuras e coloca-los no batelão.
Acertaram as contas com o Manduca e na noite anterior à ida, resolveram assistir a seção do Caruncho. Barracão cheio e o Caruncho cheio de orgulho e marra. Ao ver os dois novos visitantes diz:
– Quando tô acuado, cinco homens não me seguram! E começou a incorporar algum espírito e desafiava. Pode vir.
O Carlos, já bastante brabo com a catança de boi sem ajuda dos vaqueiros, não teve dúvida. Atracou o Caruncho pela tora do meio, suspendeu-o acima da cabeça, e estabacou-o no assoalho com um estrondo que chamou a atenção do Manduca que estava na casa ao lado às voltas com seu borrador.
O Caruncho deu um gemido e gritou:
-Não maltrata a matéria! E desmaiou.
A mulherada começou a chorar e os homens a orar. O Chico Manduca entrou no barracão, sacou o 38 e deu quatro tiros pra cima, furando o zinco da cobertura.
Muito rapidamente a festa acabou, dois devotos carregaram o Caruncho pra casa deles. O Caruncho anoiteceu, mas não amanheceu. Reza a lenda que de madrugada roubou uma canoa pequena e desabou de rio abaixo, não sendo mais visto.
O Porto Rubim voltou à sua rotina diária, tirante, passado uns dois anos, de um bocado de meninos e meninas, filhos e filhas do boto brincando na praia do porto.
Antonho Briba, da última vez que o vi, ainda lamentava a perda da sua 28. Conseguiu uma 32 velha, ruim de chumbo e batedeira de catolé.
Dona Francisca ainda cria galinha indiana e capa frangos.
Antonho Duó ainda cria porcos. Mas perdeu a raça dos grande porcos piau deixada por seu pai. O único barrão que sobrou a onça comeu. Deixou a mulher que vivia torrando torresmo fora de hora com o Caruncho.
Chico Manduca foi embora pra Feijó.
O Carlos e o Fumaça ainda transportam bois pelo rio Envira.
O Caruncho se não morreu da pancada deve estar enganando outras gentes, em outros rios.
*José Meirelles é um sertanista brasileiro. Meirelles largou a engenharia em 1970 para trabalhar na FUNAI. A partir de 1988, tornou-se um dos principais mentores da política de preservar o isolamento dos índios não interessados no contato com os “branco”.
folhadoacre

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