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“O último brasileiro” (Crônica de Barranco)

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Recordações de um extrativista e o "desenvolvimento"
Contava o ano de 2000 e os jornais, cada um a sua maneira, faziam reportagens especiais sobre a “virada do século”. O clichê centenário vinha de várias formas. Eis que a Folha de S. Paulo resolveu tratar do tema da seguinte maneira: “o Brasil dos contrastes na virada do milênio”.
Diversos repórteres da Folha mostravam como havia no país regiões “extremamente desenvolvidas” e outras que viviam ainda “no século XVIII”. E, claro, a parte “atrasada” da história foi contada onde, leitor?
Para o olhar paulistano, o atraso só podia estar por aqui. E lá veio o repórter: óculos de aros escuros e grossos, pele branquinha, cabelos pretos, lisos e partidos de lado. Magro feito uma taboca. Olheiras. Assim que pode, foi direto para Mâncio Lima.
Lá chegando, foi visitar uma comunidade distante da cidade um dia de barco, já dentro do Parque Nacional da Serra do Divisor. Conversou com um Damião, extrativista. Mostrou como “o pobre” do homem morava.
A vida simples, sem regalias: marca na vida de todo extrativista. Mas, ao menos pela foto, o Damião era homem de boa saúde nos seus quase 60 anos. Exibia até algum músculo torneado nos braços e pernas: camisa surrada de campanha política, a bermuda velha, o bigode grisalho e mal aparado. O sorriso insistente.
Com ele, mulher e seis filhos. Todos saudáveis. Alguns, claro, nus. Pela foto, eram pequenos: ainda era permitida a ousadia naquela idade. Uns comendo banana. Outros com o rosto sujo de açaí. A esposa, Tereza, era devota de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
Mas, em toda história, o que chamou atenção foi a declaração do extrativista. Um depoimento que se harmonizava com a manchete já pronta do periódico paulistano. 
Disse o Damião. “Ah! Meu filho! Eu sou o último brasileiro! Depois de mim…” (e apontou com os lábios a floresta que lhe acolhia pelas costas) “... depois de mim só existe bicho e mato. Mas, eu sou feliz aqui. Por Deus, nosso Senhor…!” E, nesse momento, tirou rapidamente o boné da cabeça em gesto de reverência, olhando para o céu. “Não troco isso aqui por nada desse mundo”.
Comparada às outras realidades da reportagem, a declaração do Damião Extrativista teve o tom da resignação dos ignorantes. Ninguém sabe como está o Damião Extrativista hoje.
Pode ter morrido. Pode ter sido picado por uma cobra. Ou ofendido o Mapinguari. Pode ter sido morto por um grupo de traficantes peruanos que transitam livremente na região transportando cocaína e cooptando famílias com remédios e comida.
Pode estar vivo. Pode ter sido contemplado com o Luz para Todos e apagado a lamparina. Pode estar recebendo o Bolsa-Família. Pode estar vivo e bravo com a movimentação da Petrobras no seu quintal.
Ou pode mandar às favas tudo isso e continuar teimando na ousadia de ser feliz ao seu modo. Pode estar vivo e ainda lutando contra a ideia que lhe foi imposta de que, com aquele modo de vida, a única condição que lhe cabe é a de ser o último brasileiro. Como estará o Damião Extrativista?
agazeta.net

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