Site Cultural de Feijó

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“Velho do Rio” joga cinzas de sua mãe em igarapé no Acre, local onde foi flechado por índios isolados

Meirelles viajou com a sobrinha e irmão por 10 dias em uma canoa/Foto: Arquivo pessoal
O sertanista paulista José Carlos Meirelles, 69 anos, conhecido nas aldeias e comunidades ribeirinhas como “Velho do Rio”, que largou o curso de engenharia no estado de São Paulo para trabalhar na Fundação Nacional do Índio (FUNAI), às margens do rio Envira, no Acre na década de 70 e onde constituiu família e vive até hoje, fez uma viagem regada de aventuras e simbologias para jogar nas águas do igarapé Xinane, afluente do rio Envira, as cinzas do corpo de sua mãe, dona Corina, que faleceu em São Paulo.
“Como queria, a Dona Corina foi cremada. As cinzas estavam guardadas com minha irmã Ana Maria em São Paulo. Fui até lá e em conversa com ela dei uma ideia: ‘Porque não jogar as cinzas dela na boca do igarapé Xinane, afluente da margem esquerda do rio Envira, onde em uma base da FUNAI trabalhei durante 22 anos? Ela não só concordou como disse: ‘Vou junto’!”, disse Meirelles.
No seu perfil no Facebook, Meirelles relatou a aventura que fez até chegar ao local onde trabalhou por 22 anos na FUNAI e foi flechado ao tentar contato com índios isolados em 2004.
Sobrinha de Meirelles joga cinzas da avó nas águas do Xinane/Foto: Arquivo pessoal
“Jogamos as cinzas da mãe nas águas límpidas da boca do Xinane, bem e onde estes mesmos índios, agora recém-contatados, me flecharam em 2004. Como a Dona Corina acreditava em vida após a morte, quem sabe, ela fez o mesmo caminho das almas dos parentes e voou para o céu. Eu só fiz o papel de Caronte, o barqueiro das almas”, disse.
Veja o relato de Meirelles na íntegra:
AS CINZAS DA MÃE
Sou um descrente empedernido. Mas, creio firmemente que nada morre realmente no universo. Tudo é reciclado. De uma forma ou outra os átomos de que somos podem muito bem estar no focinho de um leão no futuro ou ter pertencido a um tiranossauro rex no passado.
Por outro lado, tenho ao longo da vida ouvido estórias de velhos índios sobre o que pensam da morte e se existe vida depois dela. Uma das últimas que ouvi foi contada por um parente recém-contatado no alto rio Envira, os Tsapanawa (há controvérsias se realmente assim se autodenominam) ou índios do Xinane, como os trata a FUNAI.

Perguntado o que acontece quando morrem respondeu:

-Nossa alma entra no Píxia (rio Envira), desce até onde não conhecemos mais e voa para o céu.
Minha bússola moral virou pó de estrela. A Dona Corina, quem alinhou minha cuca no norte do respeito ao próximo e no rumo dos livros. Ela sempre quis me visitar no local de trabalho, sempre longe, com povos ditos isolados. Nunca deu certo.
Como queria, a Dona Corina foi cremada. As cinzas estavam guardadas com minha irmã Ana Maria em São Paulo. Fui até lá e em conversa com ela dei uma ideia: – Porque não jogar as cinzas dela na boca do igarapé Xinane, afluente da margem esquerda do rio Envira, onde em uma base da FUNAI trabalhei durante 22 anos?
Ela não só concordou como disse: – Vou junto!

Organizei a viagem e convidei minha neta Anna Cecília para ir conosco, pois ela já havia passado um ano no local quando era pequenina, num tempo que peguei toda a família e levei para lá.
Não sou possuidor de nenhum transporte terrestre, mas tenho, na casa do meu filho Artur, em Feijó, uma canoa pequena de madeira e um motor de rabeta 5,5 HP.
E lá fomos nós três, com o velhinho de piloteiro e a Anna de proeira rumo ao Xinane. De Feijó para lá são aproximadamente 550 quilômetros por água. No tempo do rio seco motores de popa rápidos não navegam. Demoramos seis dias e meio na subida e quatro e meio na descida. Aguentei todos estes dias no timão do motor com meus quase 70 anos. Acho que é o costume de não sei quantas viagem destas que fiz.
Dormíamos nas praias do rio na ida e na volta. E de quebra revisitei os parentes que fizeram contato que presenciei em 2014. Fui bem recebido pelo pessoal novo da FUNAI que hoje é responsável pela base do Xinane e pela proteção desse povo e de mais três grupos isolados que existem na região. Revi velhos amigos mateiros que ainda lá trabalham.
E jogamos as cinzas da mãe nas águas límpidas da boca do Xinane, bem e onde estes mesmos índios, agora recém-contatados, me flecharam em 2004.
Como a Dona Corina acreditava em vida após a morte, quem sabe, ela fez o mesmo caminho das almas dos parentes e voou para o céu.
Eu só fiz o papel de Caronte, o barqueiro das almas.

Meirelles. Outubro de 2017

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