Site Cultural de Feijó

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No Acre, onde mais de 70% da população é negra, reconhecer – e abraçar – a própria negritude tornou-se ato de resistência

A escuta da pluralidade de falas se tornou essencial para dialogar sobre raça e preconceito no Brasil

ASTORIGE CARNEIRO E MÁRCIA PARFAN, PARA CONTILNET
Quais histórias não são contadas? Mesmo com a criação do Dia Nacional da Consciência Negra em 20 de novembro, ainda vivemos em um país onde o racismo e o preconceito se fazem presentes. Uma grande parte da população não recebe um lugar adequado de fala e menos ainda uma voz, seja ela por meio da mídia, órgãos públicos e diversas estruturas sociais para debater problemas tão urgentes como a perpetuação do racismo.
Entre estes conflitos, está o número alarmante da violência contra a população negra brasileira. De acordo com o Atlas da Violência 2018, que traz dados do Ministério da Saúde, a taxa de homicídios envolvendo negros no Brasil passa por um crescimento exponencial, enquanto os assassinatos de não negros (brancos, amarelos e indígenas) seguiu na contramão e apresentou um menor número de ocorrências.
De 2006 a 2016, último ano com dados disponíveis para o levantamento, a taxa de homicídios de indivíduos não negros diminuiu 6,8%. Neste mesmo período, a taxa entre a população negra saltou 23,1% e foi a maior registrada desde 2006, quando foi iniciada a pesquisa. Somando todas as raças, a taxa de homicídios cresceu 13,9% no mesmo período.
“PROBLEMA DOS NEGROS”
Em entrevista ao Huffpost nacional, o ator e ativista Lázaro Ramos reafirmou a importância de saber ouvir as diferentes experiências de vida em um país tão miscigenado como o Brasil. A escuta da pluralidade das falas, de acordo com o artista, é importante para a construção de uma sociedade onde não se minimiza o preconceito enfrentado diariamente por pessoas negras de diferentes condições socioeconômicas.
“Acredito que a escuta é um lugar muito importante dos não negros para entender os outros lugares. (…) A questão da discriminação não deve ser um problema apenas dos negros. Essa é uma questão que faz parte da construção de país, da construção das nossas humanidades, da potencialização das nossas relações políticas e culturais”, destacou Lázaro na entrevista.
FALHA COLETIVA
Criada em 2013, a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Seadpir) surgiu para expandir a conscientização e o enfrentamento ao racismo em Rio Branco, no Estado do Acre. Junto com o órgão, também vieram a campanha “Rio Branco Sem Racismo” e o Disk Racismo, onde qualquer pessoa pode receber orientações sobre como proceder quando um crime dessa natureza ocorre.
“Eu mesma já sofri preconceito dentro da prefeitura, mas não vou dizer que foi ‘por maldade’ ou coisa do tipo. É culpa da cultura racista na qual crescemos”, declarou a secretária da Seadpir.
Entretanto, logo se constatou que não bastava ter a campanha e o centro de apoio público para lidar com estas situações. Elza Lopes, de 56 anos e atual gestora da Seadpir, explicou que, durante estas atividades propostas, a consciência sobre a própria negritude de diversos participantes foi despertada: “De acordo com dados do IBGE, 72% da população de Rio Branco é negra, porém várias pessoas não se veem dessa forma”.
O racismo também se mostrou presente nos mais diversos locais de trabalho, onde as “posições de poder” – como chefias e cargos de confiança – geralmente são preenchidos por pessoas não negras.
“Mas como trabalharíamos a questão do racismo se nem os próprios gestores tinham entendimento do que era racismo? Sendo que, por vezes, eles mesmos eram racistas sem saber? Muitas situações de racismo eram praticadas ‘sem que eles percebessem’. Quando a gente perguntava: ‘Você é racista?’, a maioria dizia que não. Esse é o grande problema do racismo no Brasil: as pessoas não admitem que são racistas e nem que o racismo existe”.
Sobre este ponto do trabalho realizado pela secretaria, Elza enfatizou à reportagem que este é o retrato do racismo institucional: quando os negros são privados de cargos e tomadas de decisões em locais de trabalho públicos ou privados.
“Nada mais é do que a falha coletiva das instituições. Quando a instituição pública tem uma falha coletiva que não permite que o cidadão acesse os serviços públicos oferecidos pela atual gestão. Quando uma mulher grávida e negra morre no parto por negligência, ou quando a polícia mata um jovem negro por racismo. Em Rio Branco, já houve muitos registros de casos assim: o Estado praticando racismo sem saber. Esse diagnóstico saiu da própria boca dos gestores que participaram das nossas oficinas”, disse Lopes.
“AQUELA PRETA ERA EU”
Falando sobre a própria trajetória, Elza reconheceu a presença do racismo em suas cinco décadas de vida, inclusive no próprio âmbito de trabalho. “Eu mesma já sofri isso dentro da prefeitura, mas não vou dizer que foi ‘por maldade’ ou coisa do tipo. É culpa da cultura racista na qual crescemos. Negro no Brasil é um elemento suspeito até que se prove o contrário. Essa é uma premissa que não esquecemos nunca”, disse a secretária.
Além do preconceito enfrentado na vida adulta, Elza relembrou, com outro olhar, a vivência na juventude. No seio familiar, a presença de uma avó que não escondia a rejeição contra negros também marcou muito a formação da servidora pública.
“Em casa, a situação não contribuiu para o entendimento da minha própria negritude. Minha avó, uma mulher nordestina que se dizia branca, falava pra minha mãe: ‘Maria das Neves, não sei como você tem coragem de sair com essas três macacas’. No caso, as macacas eram eu e minhas duas irmãs”, revelou.
“Minha mãe sempre me dizia que eu era moreninha, e eu aceitava isso, não achava que era uma negação da minha identidade. Hoje, minha mãe e eu entendemos o que era aquilo: uma forma de defesa para que não sofrêssemos tanto. Tudo mudou quando eu me descobri negra”, disse a gestora.
Sobre a descoberta da própria negritude, Elza relatou que tudo aconteceu durante uma viagem a São Paulo, em um encontro que celebrou os 300 anos de imortalidade do Zumbi dos Palmares: “Fui por acaso, a convite de um amigo. Não imaginava que essa experiência mudaria toda a minha vida. Antes desse encontro, eu não acreditava que o racismo existia, e tudo que eu aprendi ali mudou a minha visão. Voltei para Rio Branco com outro entendimento do que era ser negro. Quando me olhei no espelho, percebi que aquela preta era eu. Era a Elza depois de ter absorvido a importância de lutar contra esse problema”.
RESGATE DA JUVENTUDE NEGRA
A questão da violência contra os negros, principalmente contra a parcela jovem (com idade abaixo de 30 anos), também foi abordada pela representante da Seadpir. “Está mais do que comprovado que a cultura e o esporte salvam. Eles mexem com o subjetivismo desses jovens e os traz de volta ao caminho correto. Temos também o mapeamento da juventude negra, que se tornou necessário em consequência ao genocídio que acontece no Brasil, onde a maioria das vítimas da violência são jovens negros, com idade entre 15 e 29 anos”, afirmou.
Apresentação do Mapeamento da Juventude Negra em 2018/Foto: Ascom Prefeitura
Além da conscientização, das oficinas e do trabalho realizado nos órgãos públicos, Elza voltou a destacar a importância do olhar voltado para a juventude periférica: “O esporte e a cultura recuperam muita gente, existem vários relatos de jovens resgatados da criminalidade. Se existir um olhar mais preciso para isso, com ações envolvendo os bairros de maior vulnerabilidade social, é possível ter um resultado maravilhoso. Colocar os jovens pra estudar, fazer pré-Enem… Ou seja, dar oportunidade para que eles conquistem seus próprios locais de fala e posições de poder”.
TOLERÂNCIA E DEMOCRACIA
Estimulando o debate sobre oportunidades voltadas para a juventude negra do Estado, o Ministério Público do Acre (MPAC) vem desenvolvendo ações em favor da defesa dos direitos humanos, promovendo a prevenção e o enfrentamento ao preconceito e à discriminação racial.
Em outubro deste ano, quando foram celebrados os 50 anos da morte de Martin Luther King e os 130 anos da abolição formal da escravatura – tendo sido o Brasil o último país a abolir a escravidão –, o MPAC integrou uma iniciativa interinstitucional com foco, sobretudo, na promoção da igualdade étnico-racial.
Através da parceria entre Ministério Público do Estado do Acre (MPAC), por meio do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional (Ceaf), Universidade Federal do Acre (Ufac) e da Defensoria Pública do Estado, foi convidada para falar ao público acreano sobre o tema a ativista e conferencista internacional Djamila Ribeiro.
Autora do livro “Quem tem medo do feminismo negro?”e mestra em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo, Djamila falou durante sua palestra na Ufac sobre assuntos ligados ao racismo e ao feminismo negro.
“É nosso papel contribuir para promover a mobilidade social, aumentando a liberdade de decidir sobre os destinos coletivos”, afirmou a ativista e escritora. Durante a fala, Djamila também destacou o problema da violência contra a população negra, e como isso destrói ainda mais as chances de sobrevivência no país.
“A relevância dessa problemática deve ser encarada como uma oportunidade e um desafio para pensarmos sobre as políticas públicas de promoção da igualdade em nossas sociedades”, disse.
Em uma época onde a intolerância tem tomado grandes proporções, o procurador-geral em exercício do MPAC, Sammy Barbosa Lopes, destacou a importância de ações como esta para incentivar a reflexão da sociedade sobre assuntos tão relevantes, que buscam formas de garantir o exercício pleno dos direitos. “Vivemos tempos de crises agudas, amplas, mas também de profundas contradições. Nos falta, porém, substituirmos, em nosso dia a dia, a tolerância pela democracia”, disse Sammy.
“MEU LUGAR NO MUNDO É DE RESISTÊNCIA”
Isna Fernanda, 19, é militante e feminista negra, e também prestigiou a vinda de Djamila Ribeiro ao Acre. “Existem muitas ações para construir o novo imaginário social. Hoje, a consciência negra é celebrada e a Djamila fala justamente sobre isso: pluralidade”, explicou a jovem.
“Meu lugar no mundo é esse, é de resistência. Não tenho escolha, só posso me fortalecer”, ressaltou Isna Fernandes.
Este ano, Isna, que também é acadêmica de Nutrição na Ufac, integrou a comissão acreana que participou da IV Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR). “Me envolvi muito estudando com grupos de oficina para debater os textos e elaborar as propostas. Uma proposta minha foi sobre o combate à violência obstétrica contra a mulher negra”, destacou a representante.
Entretanto, a trajetória de Isna é marcada, como a de muitos negros no Brasil, pela violência. Aos 16 anos de idade, ela foi ameaçada através das redes sociais: “Disseram que iam queimar meu cabelo na escola. Foi a partir dali, com aquela violência, que eu entendi: sou negra. Sou uma mulher negra”.
Apesar de ter procurado a direção da escola na qual estudava na época, Isna encontrou o descaso. “Compreendi o que tinha acontecido comigo: o racismo. Eu fui transferida de escola, nunca descobri quem foram as pessoas que tramaram contra mim. Mas ficou claro que era mais fácil me transferir de instituição do que lidar com o problema maior, que era o absurdo de ameaçar a integridade física e moral de outro estudante. A gestão da escola e a Secretaria de Educação lavaram as mãos sobre o caso. Eu fui a discriminada, mas eu fui a prejudicada na história toda, pois tive que mudar minha rotina completamente”, relatou à reportagem.
Sobre a reflexão da violência na construção de sua militância, Isna afirmou que foi deixada com apenas uma escolha: resistir.
“Mulher, negra, pobre, periférica e discriminada. Eu era discriminada antes, mas foi a partir dessa ameaça direta contra mim que eu pude entender o quanto o racismo me afeta. Você ser assassinada por conta do seu fenótipo é uma realidade muito louca. A arma sempre esteve apontada para a periferia, isso é um fato. O sangue negro nunca parou de jorrar. Foi aí que eu pensei: ‘Isso não pode acontecer’. Meu lugar no mundo é esse, é de resistência. Não tenho escolha, só posso me fortalecer”, declarou.
Com informações da assessoria de comunicação do MPAC

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