Covid entre indígenas: 'Só uma família na minha aldeia não foi infectada com coronavírus'. Diz líder indígena feijoense
Com poucos testes diagnósticos e praticamente sem acesso a serviços de saúde, comunidade com 200 indígenas da etnia Huni Kuin, no Acre, tratou a covid-19 com plantas medicinais e doações.
BBC
Em
meados de maio, o tio de Ninawa Inu Huni Kui, líder dos Huni Kuin, comunidade
indígena espalhada pelo Estado do Acre, começou a sentir sintomas de gripe.
Quando a tosse e a
febre evoluíram para “dor no pulmão” e falta de ar, veio a desconfiança de que
ele poderia ter sido infectado com a doença nova que circulava “na cidade”.
Maná duá Bakê foi o
primeiro caso de Covid-19 da aldeia, que, em algumas semanas, viu
praticamente todos os seus 200 habitantes, distribuídos em 40 famílias, caírem
doentes.
“Só uma família não
foi infectada”, conta Ninawa.
A aldeia Maê Txanayá
fica no extremo noroeste do país, próximo à fronteira com o Peru, no território
Hênê Bariá Namakiá. Quatro dias antes de apresentar sintomas, Maná tivera
contato com uma pessoa vinda de Feijó, o município mais próximo, que está a
seis horas de barco pelo rio Envira.
A localização remota
explica, em parte, por que apenas duas pessoas chegaram a ser atendidas no
hospital — uma mulher grávida e uma adolescente de 12 anos.
A maioria foi
tratada na aldeia pelos pajés, com plantas medicinais, utilizadas em chás e
defumações.
“Até mesmo porque,
no período da pandemia mesmo na aldeia, quando estava todo mundo acamado, bem
complicada a situação, não apareceu ninguém da Saúde”, diz o cacique.
“Então
os pajés tomaram essa decisão, com resultados muito positivos na utilização da
medicina tradicional. Porque, se fosse esperar por assistência do sistema de
saúde, se fosse depender disso, acho que teriam acontecido coisas bem mais
piores. Muitos óbitos.”
Segundo a Secretaria Especial de Saúde
Indígena (Sesai), ligada ao Ministério da Saúde, o primeiro caso de Covid em um
indígena da aldeia foi oficialmente diagnosticado em 6 de julho no município de
Feijó, uma mulher.
"Dada a necessidade de
monitoramento para identificação de possíveis novos casos, a equipe de saúde
dirigiu-se imediatamente à região, estando presente no local no dia 08/07,
ocasião em que a coordenadora do DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena)
Alto Rio Juruá também compôs a equipe", afirmou, em nota, a assessoria de
imprensa do ministério.
"Foi realizada uma busca ativa de
síndromes respiratórias na aldeia Maê Txanayá e seu entorno e foram reforçadas
as ações de cunho sanitário - essenciais para o controle da doença — destacando
a testagem, orientação sobre distanciamento social e uso de máscaras. A equipe
Multidisciplinar de Saúde Indígena ainda acompanhou todo processo de
investigação de novos casos e tratamento dos que apresentaram resultados
positivos, seja por método laboratorial e/ou clínico epidemiológico."
Sebastião Carlos Oliveira
Amorim Kaxinawá, genro de Maná, afirma, entretanto, que após o atendimento em
julho a aldeia não teve mais contato com os agentes, a não ser pela visita de
um dentista algum tempo depois.
Ninawa
foi o terceiro da aldeia a pegar a doença. Acha que foi infectado no hospital,
já que, alguns dias antes, fizera um procedimento para retirada da vesícula.
Não chegou a desenvolver uma forma
grave de Covid-19, mas atingiu o que ele apelidou de "terceira fase":
teve febre, diarreia, "dores no pulmão" e muita dor nas articulações.
Como líder da Federação do Povo Huni
Kuin no Estado do Acre, ele se divide entre a capital, Rio Branco, e a aldeia.
E foi na cidade que ele ficou recluso por mais de um mês, já que o exame
diagnóstico, depois dos primeiros 14 dias de quarentena, continuou dando
positivo.
"Depois eu fiz e não deu mais
positivo. Foi quando eu saí para poder correr atrás de socorro pra ajudar o meu
povo também."
Por
meio da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab),
Ninawa e outros líderes indígenas da região articularam-se para pedir doações.
Do poder público, segundo ele, a aldeia recebeu algumas cestas básicas da
Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), distribuídas pela Funai.
No início, a principal necessidade era de alimentos, já que parte dos indígenas depende da cidade para comprar mantimentos e, naquele momento, o isolamento era quase total.
Depois, a demanda era por materiais de limpeza e alguns equipamentos
médicos.
Carolina Marçal dos Santos, que trabalha na campanha Amazônia do
Greenpeace, uma das entidades que se mobilizaram nesses últimos meses, conta
que unidades de atenção primária indígena, algo semelhante a uma
"enfermaria de campanha", chegaram a ser construídas dentro de alguns
territórios.
"Pra que eles tivessem condições de enfrentar a situação ali dentro
e não precisassem ser deslocados para regiões distantes."
O projeto, batizado de "Asas da Emergência", fez até o momento
68 voos para distribuir mais de 63 toneladas de doações, percorrendo mais de 96
mil km.
"Faltam coisas básicas como sabão, álcool e coisas mais focadas
para atenção de saúde, como cilindros de oxigênio, que a gente tem levado. Em
muitas regiões não há energia, a gente precisa inclusive levar geradores para
que possam ser utilizados esses equipamentos médicos."
Quase 80% das comunidades indígenas
da Amazônia atingidas
Os dados mais recentes da Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai)
apontam 30,7 mil casos de Covid-19 entre indígenas no país e 462 óbitos.
Levantamento feito pela Coiab apenas para a região amazônica com dados
complementares fornecidos por lideranças e profissionais de saúde, entretanto,
sinalizam um total bem maior: 26,1 mil casos e 676 mortes, com 132 das 170
comunidades indígenas da Amazônia atingidas, quase 80%.
Uma das razões para a discrepância entre os números é o fato de que as
informações oficiais consideram apenas os indígenas que habitam aldeias.
A Coiab e o Instituto de pesquisa ambiental da Amazônia (IPAM)
argumentam, entretanto, que os indígenas formam um grupo de risco
independentemente do local em que moram e, por isso, aqueles que vivem nas
cidades também devem compor as estatísticas.
Um levantamento feito pelas duas entidades em junho apontou que a taxa de mortalidade por Covid-19 entre indígenas é 150% mais alta do que a média brasileira e 20% mais alta do que a registrada na região Norte (que é a maior do país).
Conforme o registro da Coiab, não há óbitos na aldeia de Ninawa, mas
entre os Huni Kuin, que contam quase 16 mil habitantes distribuídos em 5
municípios diferentes, foram contabilizados 8 — quase todos idosos.
"Com eles foi embora muito conhecimento, de todos os tipos,
principalmente da medicina. Os anciões são nossas bibliotecas".
O líder diz que milhares apresentaram sintomas da doença. A maioria,
segundo ele, não foi diagnosticada, já que o número de testes rápidos levados
às aldeias foi bem menor do que o de sintomáticos.
Segundo a Sesai, foram enviados 780 testes rápidos ao DSEI Alto Rio
Juruá, onde se localiza a aldeia Txanayá. Conforme as informações do Ministério
da Saúde, a população indígena no distrito é de 18,2 mil pessoas.
A coordenadora executiva da Comissão pró-Índio do Acre, Vera Olinda Sena
de Paiva, destaca que a vulnerabilidade dos indígenas não se restringe ao
sistema imunológico, que é mais suscetível a algumas doenças.
O próprio modo de vida das comunidades acaba facilitando o contágio.
"São vidas de comunidade, em que tudo é muito compartilhado."
"Todo mundo é acostumado a comer junto, estar junto, participando
das atividades", diz Ninawa.
Assim, na tentativa de conter o surto nas aldeias, além de orientar a
população sobre a necessidade do distanciamento social, as lideranças indígenas
chegaram a distribuir cartilhas e a gravar áudios na língua local explicando o
que era a doença e como ela era transmitida.
Hoje a situação está melhor, ele conta. Mas a ideia é "não
facilitar", já que o vírus continua circulando.
"O povo voltou novamente, não 100%, mas retomou o convívio social
na comunidade."
"Sempre que tem uma reunião nas comunidades os pajés estão lá com
as ervas fazendo sua defumação."
Epidemia da borracha
A epidemia de 2020 traz lembranças de um passado não tão distante.
Os
Huni Kuin foram quase dizimados no primeiro ciclo da borracha, no fim do século
19. Com o aumento do preço da borracha no mercado internacional, houve uma
corrida para a região amazônica, para exploração das seringueiras de onde se
extraia o látex usado na fabricação do produto.
"Foi a correria, o assassinato dos
nossos parentes", diz Ninawa.
A tomada dos territórios indígenas
daquela época é conhecida na região como "correrias", um tempo
marcado por migrações forçadas e massacres.
"Com eles vieram junto a
contaminação da gripe, do sarampo, da catapora."
"Essas doenças também dizimaram
muitos de nossos parentes, de nossos líderes, de nossa população jovem,
crianças, mulheres, né, que foi exatamente por esse contato que veio de
fora."
As terras dos Huni Kuin começaram a ser
demarcadas no fim dos anos 1980. Hoje há 12 territórios reconhecidos no Acre.
*Reportagem e texto de Camilla Veras Mota, de São Paulo, reportagem e imagens de Fernando Crispim e José Monteiro, de Feijó (AC), e produção de Ana Terra Athayde, do Rio de Janeiro.